sexta-feira, dezembro 31, 2010

FELIZ ANO NOVO!

ANO NOVO, DE NOVO

De malas prontas o tempo promete
não voltar atrás,
atrai tudo o que foi premeditado
e aspira um cenário
novo para mover um mundo igual.
é ato contínuo,
não há tempo para eterno retorno,
nem para pensar
o que seria do que já não é.

A festa acabou,
José resolveu seguir seu caminho;
cansou de esperar
que a tal utopia se consumasse
e tornou-se homem.
E derramou seus derradeiros dias
em muitas certezas:

teve certeza da vida e da morte,
do tempo vindouro,
da perene alegria dos eleitos,
da desilusão
dos que desistiram de desvendar
qual senda seguir
para que os sonhos não desvanecessem
e dormiu em paz.

José foi feliz, quem mais o será?

(Paulo Cruz)

sexta-feira, novembro 26, 2010

BRANCO, SILÊNCIO E IMOBILIDADE
à memória de Robert Bresson

Que deserto te cerca, asceta?
Onde vais com tua lancinante luz?
Limpando do céu os excessos,
cercando de sina os modelos,
moldando à inércia teus atos;
onde vais?
Agora que escuto o som de teus silêncios,
que ando atrás das expressões sem face,
faço uma prece e pareço entender
que a vida irradia em monotonia,
que a arte é o tormento do instante,
nutrindo, ainda que distante,
na alma dos homens o afã do infinito.

(Paulo Cruz)


quarta-feira, outubro 27, 2010

“E a esperança não traz confusão...” (Rm 5:5a)

SACRAMENTO AMIZADE
ao casal amigo Elpídio e Cristina

O Deus que habita em nós em pão e vinho,
também agora habita em amizade.
Em meio aos livros, música, nos filmes,
no crer comum, na força dos conflitos,
na união em prol do pensamento.

Na mesa posta, aposta-se na vida,
na razão sã, na ordem da existência,
tal como desejaram os Antigos.
No estudo, a oração do entendimento,
e na ação do amor (um dom sem preço),
a mística da paz inspira a todos
que aspiram na amizade um bem supremo.

Na comunhão de nobres elementos
― a arte, a fé no Cristo, o intelecto ―
que juntos dão à vida plenitude,
o estar entre os amigos jamais cansa;
da brisa matutina à noite adentro,
tal graça tem um nome: esperança.

(Paulo Cruz)

quinta-feira, setembro 16, 2010

RUÍNA NA NEBLINA
a Theo Angelopoulos

O amor ao mito no divino olhar de Ulisses;
sempre voltando à casa, no retorno à terra
natal, Ítaca, onde o espera Penélope,
que aos importunos fielmente nega afeto.

Triunfante retornou, deslocado e só,
sem reconhecer o solo que tanto amou,
que fora transformado num campo minado
pelos difamadores do Templo de Delfos.

Exilado em seu próprio país adorado,
o herói silencia seu roteiro trágico,
pois a promessa de um mundo sem Homero
não passou de mera quimera libertária.

Caminha atordoado e sem retomar
o que fora perdido com o tempo ausente;
é um transeunte nauseabundo empedernido,
jogado à existência insensata de si

mesmo. Recontando, incansável, sua história,
no contraponto onde se encontram a verdade,
a insistente chuva, o frio e a solidão,
angustia-se na consumação do fato

de que, mesmo enganando o feroz Polifemo
e também revertendo os encantos de Circe,
o cercaram os fatos sombrios da guerra.
Tróia o tornou insensível, e de repente,

mais tarde, se viu obrigado a constatar,
que melhor seria estar, de modo fictício,
no escuro edifício de um cinema, a contar
sua triste história em trinta e cinco milímetros.

(Paulo Cruz)

quinta-feira, julho 01, 2010

DE MIM

De mim, que já não sou eu mesmo, grito,
porque me falta um pouco ainda, ainda,
nos versos que com dor são arrancados
de mim, pois não consigo ser eu mesmo.

De mim, de mais ninguém, demonstro os erros,
se bem que poderia apontar outros,
que, como eu, não são mais que um instante
de sonho, sanha, sina e céu noturno.

Mas só de mim é que hoje achei motivo.
E ativo um paradoxo dialético,
seguindo a via inversa à que me afronta
e à frente de mim mesmo me confronto.

O espaço é tão concreto e específico...!
Se fico em mim não sei se vou além,
― tal como o além-do-homem nietzscheano ―
ou mesmo até se em mim encontro Deus.

De mim é que exagero e gero dúvidas,
pois sei que sou capaz de mais um pouco;
ao menos de esperança sou munido
a ponto de estar são e também louco.

(Paulo Cruz)

sábado, maio 15, 2010

PRÉ-SOCRÁTICO

Que estado pré-socrático me encontro!
De mim foi retirada a metafísica;
de meus antigos versos, nem vestígio
se encontram nos compêndios filosóficos.

O golpe de Platão veio outro dia;
agora, aquilo que era só um lapso,
lançou-me em solavancos num deserto!
E até pensei que sairia ileso,

driblando o vil rigor das teorias;
mas cedo sucumbi em desespero,
caindo em vãos delírios acadêmicos.
Por isso concluí num silogismo:

se todos são razão filosofando
e eu de igual maneira estou atento;
poeta já não sou, sou pensamento!

(Paulo Cruz)

sexta-feira, janeiro 22, 2010

COM VOCÊ, SEM VOCÊ
à minha esposa Abigail

Sem você, noite triste
Com você, bem querer
Sem você, vida existe
Com você, mais viver

Sem você, grão delírio
Com você, mente sã
Sem você, vão martírio
Com você, fim do afã

Sem você, gela a alma
Com você, corpo ardente
Sem você, não há calma
Com você, paz prudente

Sem você, rubra aurora
Com você, céu luzente
Sem você, o riso chora
Com você, está contente

Sem você, preto-e-branco
Com você, colorido
Sem você, saltimbanco
Com você, comedido

Sem você, Afrodite
Com você, Psiquê
Sem você, sem limite
Com você, sem você.

(Paulo Cruz)

sexta-feira, janeiro 15, 2010

HAITI

Não há em ti beleza,
há em ti escuridão e morte,
tremor de terra,
terror e medo.

Há em ti a impotência,
há em ti o espólio
na instigante ganância
dos negociantes de gentes.

Há em ti a intriga,
o racismo
do raciocínio inferior
do homem branco.

Há em ti o clamor
pela paz,
pelo dissipar da discórdia
entre irmãos.

Há em ti mãos ensangüentadas,
na guerra
e no mistério demonizado
de teus ritos.

Há em ti a sensação
de desespero
e o grito lancinante
diante de tanta humilhação.

Em ti há
inversão de valores;
e os que te devem
te devoram deveras.

Há em ti, Haiti
o que há em mim,
e em teus escombros
escondo a vergonha

de nunca ter chorado por ti.

(Paulo Cruz)