quarta-feira, novembro 12, 2008

UM NEO-ATEU VISITA O SERTÃO

Seu cangaceiro
porque tanto desatino?
Não há Deus, não há destino,
nem há céu onde morar.

A vida é isso,
muita dor, muito conflito,
mas condenação, repito,
é viver a esperar

alguém que venha
lá do Alto respondendo,
meus problemas resolvendo,
sem que eu saiba onde está;

onde se esconde
esse ser tão desligado,
que não vê o resultado
do que resolveu criar.

Por isso eu digo,
Somos sós, é só matéria,
viemos das bactérias,
a ciência vai provar;

com Charles Darwin,
pai da nobre teoria
(era tudo que eu queria!):
de que a vida vem do mar.

E evoluindo
toda terra, toda espécie,
tudo nasce, tudo cresce,
não sei onde vai parar!

Diria Sartre,
eu o li e te garanto,
é o homem, sem encanto,
condenado a vagar.

E sem comando
ou escolhe a aventura,
sem abonação futura,
ou melhor é se matar.

À minha vista,
li num livro marxista
que a vida é uma conquista
do trabalho a prosperar.

Onde o povo
tem dinheiro sem limite,
todo mundo (acredite!);
pobres? Em nenhum lugar!

Ou pelo menos
tem comida, moradia,
tudo isso é garantia
do governo singular.

Em tais leituras
(mais moderna impossível),
que engenhosidade incrível,
nisto eu quero acreditar.

Não nesse livro,
que escrito há tanto tempo,
por um povo desatento
que não sabe seu lugar.

Espalha o ódio
não a paz, como professa,
seus desvios não confessa,
só sabe dissimular.

E concluindo:
seu estômago roncando
e este sol te estrangulando
não há como resolver.

Me dê teus dados
que voltando ao mundo ativo,
mando-lhe um donativo,
é só o que posso fazer.

E respondendo,
o sofrido cangaceiro,
com pensamento ligeiro
mesmo a fome a o atacar:

Seu dotozinho,
me desculpe, sou sincero,
sua solidão não quero
e lhe digo, quer ouvir?

Aqui no seco,
onde não há segurança,
só se vive de esperança,
tenho um Deus a quem pedir.

Se eu me enfronhasse
Nessa tua maluquice
“Não há Deus!” — Foi o que disse?
Como iria resistir?

De um escritório
é tão fácil palavrório,
mesmo esse tão simplório
pra grã-fino discutir.

Mas no cangaço
esse assunto dá cansaço
e aqui não há espaço,
eu não posso desistir.

(Paulo Cruz)

quarta-feira, novembro 05, 2008

God Bless America!

OBAMA

A cor que vai correndo pelo mundo,
nas urnas que anunciam novo tempo,
tornando tudo negro ao redor - tudo!
mudando a cor do sonho americano
nas faces brancas rubras taciturnas,
é a cor da alegria esperançosa.

Do ódio Ku-Klux-Klan ensandecido
à marcha de um milhão, dos muitos sonhos
cercados de ideais; do pacifismo
de Martin Luther King (I Have a Dream!)
ao grito radical de Malcolm X,
uniu o amor de um povo infeliz.

A Terra estarrecida volta os olhos
à imensa minoria, descendente
de escravos sequestrados cruelmente,
mas cheia de organização e orgulho,
mostrou que a determinação termina
por sempre conquistar espaços muitos!

Mas ao mostrar ao mundo uma utopia,
cercar de messianismo um simples homem,
sem ver o mecanismo que isso envolve,
não é o que se deve ter em mente;
e sim por ver na história sobretudo
um afro-americano presidente.

(Paulo Cruz)

sexta-feira, outubro 24, 2008

SURTO

Que mágoas tão marcadas canto agora!
Meu corpo foi surrado e minha alma
padece em agonia sem disfarce;
quem poderá deter o mal lá fora?

Que lutas me concedem meus labores!
Já não consigo mais seguir em frente,
pois todos meus esforços são derrota;
quem livrará meu corpo penitente?

Que falta de esperança em mim aporta!
Em minha porta a solidão insiste,
e em riste os dedos para mim aponta;
quem pode resistir tamanha afronta?

Que ditos desditosos destes versos!
São frutos de infortúnio tão pungente,
causado em mim por corações perversos.
Quem nunca reclamou inutilmente?

(Paulo Cruz)

quinta-feira, outubro 09, 2008

FAMÍLIA
Ao amigo André Eduardo e família

Homilia do eterno
no belo teor do mundo;
da criação mais carente
de amor,
de maior amor,
de melhor mérito
na alma dos mortais;
que por ser demais precisa,
precisa demais
de mais
amor.

(Paulo Cruz)

quarta-feira, setembro 24, 2008

PRO-CEDER

Penetrar as palavras,
penetrar o cerne
das coisas;
cercear o sabor
dos amores,
saborear o sol,
acusar o caos,
causar desconforto
nas formas,
fortalecer a trama,
tornar terno o teor
dos temas,
desatar a arte,
confrontar os fatos,
mirar as imagens,
minar os medos,
podar o poder,
oferecer a face,
vencer o vácuo
dos vícios,
perder a vida
e achá-la eterna.

(Paulo Cruz)

segunda-feira, setembro 15, 2008

Poema a duas mãos!

África

Esse contin-ente
é o gene de tudo,
é o berço do mundo;
é palco sangrento,
é riso e lamento,
é tez de azeviche,
magia e fetiche,
Tão frágil e parente,
Tão sábio e urgente,
É o sangue da gente.

Esse contin-ente,
tão vivo e ardente,
foi tão violado
por povo indecente;
tem tudo e tem nada,
sua história é contada
por seus descendentes,
que já deslocados
por todos os lados
procuram sementes.

(Paulo Cruz e Miguel Garcia)

sexta-feira, agosto 29, 2008

“Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.” (Fernando Pessoa)

ESTIAGEM

Serôdia foi a chuva que surgiu
certo dia
e o rio se encheu de águas caudalosas.
E eu à beira,
zeloso entre o prazer da correnteza,
e a certeza
de não poder banhar-me por inteiro.
Era um sonho,
e eu sentado em companhia ilustre
não sabia,
que tal cenário se dissiparia
tão ligeiro,
que o belo da paisagem que eu nutria
em meu corpo,
jamais encobriria o meu tesouro.

E por fim,
as águas que corriam caudalosas
se calaram,
irrigaram o solo de meus sonhos
e partiram,
em novas substâncias transformadas.
Era um risco
trilhar por um caminho tão incerto,
pois seu curso
feria de erosão a terra fértil.
Por receio,
o rio não foi ao mar tornar-se intenso
e seu leito
secou sob a aridez de um deserto.

(Paulo Cruz)

quarta-feira, agosto 13, 2008

O SONHO DE UM POETASTRO

Meus vocábulos são quiméricos!
De fato são estratosféricos
os meus estertores verbais.
São meus vãos delírios poéticos,
a (im)precisão milimétrica,
o ritmo, a rima, a métrica
e, acima de tudo, o estilo;
e muito mais, assim assaz
a minha intensa produção,
a (a)versão total dos fatos
narrados à minha maneira,
tão estável e tão (estúpida?)
bem esculpida em belos versos
vernáculos, e combinados
à risca, ao lado de um anseio
pela perfeição no escrito.
Em um sentido mais estrito,
meu profundo anseio é somente,
no futuro, figurar neste
vasto cenário literário
das séries, das antologias
e descansar em uma estante,
perdido, até ser encontrado
por um leitor inveterado,
à vista de um alfarrabista.

(Paulo Cruz)

sexta-feira, julho 25, 2008

ERA DIA

Amei-te em tudo que fiz;
não mais era noite
em meu coração,
era dia,
era a aurora que fria
iluminava-me
e eu estava nu
em meus sentimentos.
Havia em mim a pureza
de poder entregar-me,
de mudar meus medos,
de medrar minha vida,
e virar o veio de minha sorte.

Mas por um corte terrível
enterrei meu triunfo,
tripudiei minha moral
e amorteci meu amor.
Sem calcular que em ti
atirava minhas tralhas,
traía meu próprio ser
e o opróbrio, enfim,
seria o meu fim.

(Paulo Cruz )

quarta-feira, julho 09, 2008

Comunhão, eis tudo!

"EUCHARISTÍA"
A Miguel Garcia e família

Comer e comer
e unir-me a ti
e tirar de mim
o não de nós,
os nós que me separam
de mim, de ti,
detido de amar,
de ter dado demais,
a mais, a sós,
sem Deus
sem seus manjares partilhar,
ilhado de ti,
de nós,
sem luz, sem sal,
sem ser comensal,
sem comer de mim,
de ti, de nós,
sem no dealbar beber
e aguçar o paladar;
e comer um doce de noz
moscada
e mascar Deus
e beber Jesus
e na Cruz
adeus solidão.

(Paulo Cruz)

terça-feira, junho 10, 2008

NEGRITUDE
À memória de Aimé Césaire

Ponta de lança,
de faca no peito;
uma chama
de sangue que sobe
e eclode na ponta
da pena,
na luta do povo
preto oprimido;
que agora anuncia
com rimas, metros, pés,
liberdade através
da poesia.

(Paulo Cruz)
AMOR DE VERANEIO

Nunca tive um amor de veraneio.
Meus amores todos foram maiores
do que eu mesmo, maiores que eu
em minha modestíssima estatura,
maiores que meu coração, acima
de minha capacidade de ser
menor que o necessário a uma paixão.
Meus amores duram a vida toda,
e são parte de mim, de minha arte,
são o que fui e sou ao mesmo tempo,
meu futuro saturado de vida,
são a todo momento e num instante
são tudo de mim e o que nada tive,
são de tudo o que tenho, o mais humano
e o mais humilde mistério em mim,
meu clamor ao infinito, ao Eterno
(pois só o Eterno ama ternamente).
Minha mente arde de amores vivos,
e nunca é tarde para amar senão
tudo o que existe; nada é passageiro.

Amor de veraneio é um devaneio,
nunca me entreguei senão por inteiro.

(Paulo Cruz)
ARCO-ÍRIS

Vermelho lá vai violeta,
e lava minha alma de poeta
em sua névoa de vida abundante.
Instante que alude à divina aliança,
mudando a desordem ordinária da vida.

Sinal de um tempo aceitável;
guardião de tesouros elementais,
de quimeras infantis,
da mítica morada das fadas
e da força infinita da magia.

Vivas cores desprezam o poder da morte
e marcam o céu de sutil imortalidade.
Um sol tímido e vacilante revela-se
e anuncia um dia de amores
puros como um arco-íris.

(Paulo Cruz)

terça-feira, maio 27, 2008

Ressaca do "13 de Maio"

ABO-LIÇÃO

Cantemos o dia da liberdade.
Dia que a princesa branca firmou
o decreto em favor da negritude.
Dia que a alegria contagiou
o canto triste dos filhos da África
e os livrou pela tocante atitude
da ilustre representante do império.
O raiar de um novo tempo chegou,
brilhando na atmosfera cinzenta
da Senzala. Ungiu o lamento, o banzo
do coração escravo já descrente,
e o fez, inocente, correr, achando
que seria o fim de seu sofrimento.
Tateou no escuro um futuro escuso,
vislumbrou um cenário visionário
e sonhou, quimérico, um sonho homérico.

Mas que grilhões são esses, essas marcas,
que ainda habitam seu corpo dorido?
Não era a liberdade uma conquista?
Seria o início de um futuro ilustre,
ou mero embuste a tal abolição?
Sim, fora engodado pelo destino,
e o desatino de tal decisão
o lançara sem nada mundo afora
e agora, nem a Senzala, que era
o pouco que lhe restava da África,
um alívio na vida tão sofrida,
lhe serviria agora de guarida.
Relegado às favelas e aos guetos,
sem emprego ou favores dos antigos
senhores, ficara a sós e à margem,
perpetuando a imagem de indolente
que o faria sofrer durante séculos.
A luta agora ocorre em campo aberto
e o mais novo oponente é o próprio espelho;
sem oportunidade bate às portas,
total desprezo enfrenta à sua frente
e a mente então sucumbe, fatigada.

Onde buscar amor, um novo canto,
que ecoe, rijo, de seus negros lábios?
Onde buscar socorro se aos encargos
severos de sua luta sempre corre?
Fazer do vão prazer esconderijo
e alimentar os tabus conformistas,
fazendo assim o jogo do racistas,
é dar poder aos que te querem fraco.

Se a um só labor unir sua alma
e à força dos irmãos buscar ajuda,
um novo despertar da consciência
será sua liberdade verdadeira.
De posse de auto-estima altaneira,
lavar a tez pesada de amargura,
louvar os ancestrais de forma pura,
olhar em derredor de modo atento,
deixando aberta a porta da cultura.
Dispor a mente a novas descobertas,
mantendo em bom caminho a atitude,
fazendo assim nascer um povo forte,
herdeiro de um legado construído
por sobre o sofrimento e destinado
a não ser esquecido após a morte.

(Paulo Cruz)

sexta-feira, abril 25, 2008

NOVOS RUMOS
À Luciana Melo

Não quero tristes despedidas,
nem suposições descabidas,
há um longo caminho a seguir.

Andar por onde velhos sonhos
já muito antes habitavam
e apostar alto no devir.

Lembrar os amores possíveis,
deitar na varanda da vida
e estar a pensar no partir

como um desejo satisfeito.
No peito a doce nostalgia
de um grande carinho a fluir.

Um ensejo de novos rumos
no raiar de um dia que surge.

Decidir é deixar-se ir.

(Paulo Cruz - 25/04/2008)

segunda-feira, abril 14, 2008

"Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio." (Fernando Pessoa)

À BEIRA DO RIO

À beira do rio há um tempo
que não fica conosco,
segue esgueirando-se
pelas encostas dos montes,
velando pelos vales
que se intensificam
à medida que o mar se aproxima.
Acima de toda e qualquer pretensão
descabida, o rio, sob o tempo,
cumula de beleza os seres,
que em suas águas se deleitam;
deitam-se à sua beira e buscam guarida
nos amores possíveis da natureza.

À beira do rio só há uma certeza:
de que a mesma correnteza que leva
os amores ao mar,
traz a cada momento uma nova alegria,
que fortalece seu leito
em meio à intensidade das águas,
fortelecendo as raízes que moram à margem
de sua inocente magnificência.

(PC - 31/03/2008)

segunda-feira, abril 07, 2008

O BELO

Enfim, o que há de belo
na monotonia dos dias,
senão os dias que se seguem,
incólumes como os deuses,
que do Olimpo ferem
com sua imortalidade
a fragilidade dos homens?

O que há de belo no frenesi
da noite, que guarda de nós
o melhor de nossos dias?

O que há de belo no sumo
sumário dos sonhos,
Na saga solitária e sombria
rumo à Alegria?

Há um desejo, um lampejo
de vida plena,
de felicidade na doce angústia
da saudade,
na dolência das horas,
que passam tão depressa
nos momentos fraternos.

Há um leve desespero
pela eternidade dos tempos,
na inesperada união das estradas;
por onde seguem, felizes para sempre...
como num conto de fadas.

(PC - 27/03/2008)

quarta-feira, fevereiro 27, 2008

DO AMOR

Diria eu do amor qualquer bobagem?
Não. Sei que o amor é nato dom perfeito,
que no peito que guarda a paz, proclama
as intenções de um bem que é tão modesto,
que o seu protesto de atenção é doce
a ponto de manter resignada
a alma do que sofre o amor perdido,
e pensa não servir para mais nada.

Há dor, não nego, mas há fé, há vida,
e havendo isso por perto, o desespero
não ganha dimensão não concedida,
de ter toda atenção que há no mundo.

O amor só faz algumas exigências:
conter o desejar desordenado,
amar sem concessão, limite ou medo,
colhendo com prudência o que semeia.
Fugir de sujeitar a alma alheia,
sentindo da saudade o traço terno,
que haja espaço à liberdade, ao sonho,
que enfim atingirá valor eterno.

(PC - 25/02/2008)

terça-feira, fevereiro 12, 2008

O HOMEM SEM CONVICÇÕES

Sou um debatedor profundo.
Prolixo,
fixo meus indícios de certeza
na mesa do empirismo;
e com dinamismo digo o que sinto;
até minto, mas não admito qualquer apelo
em servir de modelo a ninguém!
Mantenho distância dessa insistência
de uma verdade absoluta;
minha paixão resoluta pela contradição,
e a aparente inocência de minha incoerência,
são armas sagazes contra os loquazes,
um truque perfeito a que tenho direito.
Não sou simpático aos dogmáticos,
nem convicto aos vacilantes;
mudo a todo instante,
sem ajudar aos que desejam um lugar
onde a razão não seja refém de ninguém.

Sou um debatedor profundo.
E do fundo de meu abismo,
semeio, no seio de meu cinismo,
dúvidas disfarçadas de argumentos
àqueles que quiserem mostrar
a qualquer momento,
que o sofisma é o alimento
do homem sem convicções.

(PC - 12/02/2008)

terça-feira, janeiro 08, 2008

QUEM IMAGINARIA?
Pelo "Dia Mundial de Luta Contra a Aids"

Quem imaginaria até então:
que a vida toda era uma brisa fria,
e os sonhos certamente um mau presságio,
do estágio que atingimos num gemido?

Quem imaginaria até então:
que a calma era melhor que a correria
e a busca do prazer de modo ágil
seria sofrimento garantido?

Quem imaginaria até então:
que fosse a solidão fatal sangria
e o ser feliz fosse um feroz naufrágio
que não passava de tempo perdido?

Quem imaginaria até então:
que só o amor por fim acalmaria
o desespero de um futuro frágil
e os medos de um coração partido?

(PC - 29/11/2007)

sexta-feira, janeiro 04, 2008

AO ESCULTOR DO TEMPO
À memória de Andrei Tarkovski

Ainda ouço o som
da chuva no telhado.
O rosto talhado de existência,
a insistência da vida
nos poemas do pai,
na arte do ator,
na fotografia dos fatos.
Tudo que sei,
Andrei,
é que agora não sou mais o mesmo;
teus sonhos são os meus,
sou teu personagem perdido
no ocidente, num acidente do tempo,
uma imagem de tua criação,
canção que de tuas lentes
emana lentamente.
Sou amigo de teu sofrimento,
abrigo de tua arte,
afrontando as fronteiras do saber,
os encargos da dor
e os sabores amargos da solidão.

(PC - 12/12/2007)